Em audiência pública promovida pela Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT) na tarde dessa quarta-feira (15), especialistas apontaram riscos para o país com a eventual proteção regulatória do dossiê de testes (PRDT) para medicamentos humanos. Os debatedores manifestaram preocupação com o acesso da população aos remédios genéricos, com a diminuição da participação das farmacêuticas nacionais no mercado e com o aumento do preço dos medicamentos.
O requerimento para a audiência ( REQ 27/2023 ) é de autoria do senador Izalci Lucas (PL-DF), que coordenou o debate. Segundo o senador, a partir de 2002, começou a vigorar no Brasil a PRDT para produtos veterinários e agrícolas ( Lei 10.603, de 2002 ), tendo sido excluídos explicitamente os produtos para uso humano. Ele aponta que é de fundamental importância que o Senado discuta as consequências, os impactos e os benefícios para pacientes, para as indústrias de genéricos e inovadoras e para a economia brasileira da adoção da PRDT destinado a produtos farmacêuticos de uso humano.
— Quem é que vai fazer investimento se não puder colocar no preço do remédio? Se não houver investimento, não haverá o produto — questionou Izalci, informando que haverá mais duas audiências sobre o tema.
Os senadores Wellington Fagundes (PL-MT) e Astronauta Marcos Pontes (PL-SP) também acompanharam a audiência. Marcos Pontes disse que o tema é complexo e envolve múltiplos fatores e setores.Na opnião de Pontes, a audiência é essencial para que o Senado permaneça atento a diversas perspectivas que envolvem a PRDT.
— É importante sempre visar o incentivo à inovação, como também melhorar a vida dos pacientes — alertou o parlamentar por São Paulo.
A coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip), Susana van der Ploeg, explicou que, na primeira vez que um fabricante for solicitar o registro de um novo medicamento, ele deverá apresentar os dados dos estudos pré-clínicos e clínicos. Assim, é elaborado um documento chamado de dossiê. Segundo Susana, a exclusividade de dados, com a PRDT, impediria que autoridades reguladoras aceitassem pedidos de registro de medicamentos genéricos que utilizem como base os resultados fornecidos pelo solicitante do registro do medicamento inovador. Ela ainda disse que os principais interessados na PRDT sãos as indústrias farmacêuticas transnacionais.
— Esse modelo prejudicaria a saúde pública, o orçamento público e prejudicaria o povo brasileiro. O que precisamos é diminuir o preço dos medicamentos e não os direitos dos brasileiros. Não precisamos de exclusividade, mas precisamos de transparência. Precisamos de investir mais no SUS — defendeu Susana.
Diretor do Departamento de Programas Temáticos da Secretaria de Políticas e Programas Estratégicos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Leandro Pedron explicou que a PDRT é um mecanismo para proteger por um tempo específico determinadas informações clínicas que são submetidas às entidades reguladoras, evitando que essas informações sejam utilizadas por terceiros para, por exemplo, fabricar os remédios genéricos. Ele lembrou que outros países já têm uma regulamentação específica para esse tipo de proteção às informações. O diretor ainda afirmou que outros modelos de registro podem ajudar o Brasil a ter sua própria legislação. Na visão de Pedron, os desafios acerca do tema exigem um debate mais profundo para pensar, por exemplo, a relação entre a inovação e o acesso a medicamentos.
— Como é possível ter esse equilíbrio? Ainda mais tendo um SUS, temos que pensar em como facultar o acesso [aos medicamentos] à população em geral. Devemos prezar pela inovação dos produtos de saúde que, em última instância, visem atender nossa população — ponderou.
Os convidados também alertaram para supostos riscos e prejuízos que a adoção da PRDT pode trazer ao Brasil. Para a especialista em Propriedade Intelectual e Biodiversidade da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina) Ana Claudia Oliveira, um sistema de proteção dados para remédios humanos, como existe em outros países, barraria e atrasaria o acesso aos medicamentos no Brasil. Ela admitiu que dentro do setor há entendimentos diferentes sobre a proteção de dados.
Segundo a especialista, o tema voltou a ser discutido porque o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu derrubar, em 2021, a norma que prorrogava o prazo de patentes. Depois disso, acrescentou a pesquisadora, muitas farmacêuticas moveram processos para barrar genéricos de combate a doenças como câncer, aids e diabetes. De acordo com Ana Claudia, uma proteção de dados pode atrasar em até cinco anos a entrada de um remédio genérico no mercado.
— É uma falácia afirmar que odata protection (proteção de dados) vai trazer inovação ao Brasil. Vai ter um impacto negativo para a sociedade e para a saúde da população. É disto que estamos falando: de acesso a medicamento, de acesso à saúde pública — argumentou Ana Claudia.
Na mesma linha, a vice-presidente Executiva do Grupo FarmaBrasil, Adriana Diaféria, afirmou que a indústria farmacêutica nacional pode ser prejudicada com a implantação de um sistema de proteção de dados. Ela explicou que essa proteção de dados não pode ser confundida com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados – Lei 13.709, de 2018 ), mas tem a ver com as informações de novos medicamentos levadas para registro na Anvisa. Para Adriana, a adoção da PRDT aumenta os gastos com saúde, reduz o acesso a medicamentos e vai pressionar ainda mais o orçamento público. Ela ainda disse que não é possível identificar os benefícios e eficiências gerados pela implementação da PRDT.
— A adoção da PRDT irá retardar a entrada de novos medicamentos e resultar em um aumento de preço. Além disso, pode atrasar o desenvolvimento da indústria farmacêutica nacional — alertou Adriana.
A coordenadora do Grupo de Economia da Inovação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Julia Paranhos, apresentou uma avaliação dos impactos da exclusividade sobre dados de testes de registro de medicamentos sobre a inovação e o sistema de saúde brasileiro. Segundo a pesquisadora, a PRDT pode prejudicar o acesso da população aos genéricos. Ela disse que a pesquisa mostrou que a postergação da disponibilidade de genéricos e biossimilares gera aumento de preços (entre 12% e 22%) e uma redução no consumo de medicamentos (de 5% a 9%). Do ponto de vista econômico, a medida também pode gerar redução no faturamento das empresas nacionais e pode ampliar os gastos do Ministério da Saúde.
De acordo com a consultora de Saúde do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), Ana Carolina Navarrete, efetivar a exclusividade de dados no Brasil para medicamentos humanos seria uma ofensa à ordem econômica, pois a PDRT teria o potencial de destruir instrumentos relevantes de livre concorrência no país, como a política dos remédios genéricos. Ela disse que essa política ajuda a promover o equilíbrio e a justiça econômica entre interesses de defesa do consumidor e desenvolvimento tecnológico.
— Um dos patrimônios mais importantes que a gente tem hoje, como país, é a política dos genéricos. E essa política é essencialmente baseada no fato de os fabricantes de genéricos poderem acessar o dossiê regulatório. Permitir a exclusividade de dados é retardar a entrada de remédios no país. O tempo importa! — declarou Ana Carolina.
A audiência ocorreu de forma interativa, com a possibilidade de participação dos cidadãos. Vários internautas entraram em contato com a comissão por meio do portal e-Cidadania . O senador Izalci Lucas destacou algumas dessas mensagens. O internauta identificado como Gustavo, do Distrito Federal, manifestou preocupação com a possibilidade de a PRDT prejudicar a venda de genéricos, que têm preços mais acessíveis. Esaú, do Ceará, questionou a burocracia que pode envolver todo o processo da PRDT. Já Manjeri, do Paraná, destacou que a PRDT é importante como forma de incentivar os investimentos na área da pesquisa.
Em 10 de fevereiro, o Brasil completou 25 anos da implantação da política de medicamentos genéricos, por meio da Lei nº 9.787, de 1999. De acordo com informe do Conselho Federal de Farmácia (CFF), o país seguiu a mesma linha do que instituíram os Estados Unidos nos anos 1960: "promover a concorrência dentro do mercado farmacêutico, com o objetivo baratear os preços dos produtos". Por lei, o genérico têm de ser ofertados a preços 35% abaixo dos produtos de marca (referência). Na prática, de acordo com o CFF, a diferença gira em torno de 67%, podendo chegar em alguns casos a 90%.
"O barateamento e o consequente aumento do acesso da população aos genéricos deve-se ao fato de a indústria não precisar investir em pesquisas para desenvolver o fármaco, vez que um semelhante já está presente no mercado", informa o conselho. Outro fator que barateia os custos é dispensa de publicidade, vez que o medicamento não tem nome comercial. Mas a instituição ressalta que os genéricos só podem ser produzidos, registrados e comercializados, depois de os medicamentos originais terem as suas patentes expiradas. "As patentes são conferidas às indústrias que pesquisam uma molécula ou princípio ativo e fazem o registro científico e clínico de suas propriedades", explica o CFF.
Apesar de alguns médicos continuarem duvidando da qualidade dos genéricos, o conselho de Farmácia atesta que a política implementada com a Lei nº 9.787, além da reduzir preços, "garantiu a equivalência em qualidade, eficácia e segurança entre os genéricos e os medicamentos de referência, por meio de rigorosos testes de bioequivalência". Conforme o Portal da Fiocruz, o teste de bioequivalência é o processo de comparação entre dois medicamentos que possuem as mesmas moléculas, nas mesmas concentrações e formas farmacêuticas, com o intuito de avaliar as concentrações de um e de outro no organismo humano. Só assim, se pode dizer que os dois remédios têm a mesma eficácia. Apenasa partir da testagem, a comercialização do genérico é autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Todos esses fatores, mais confiança da população, alavancaram as vendas dos genéricos, segundo o CFF. Nos 12 meses de 2023, as vendas desses medicamentos totalizaram 1,98 bilhão de unidades, representando um crescimento de 5% em relação a 2022. Já o faturamento, chegou a R$ 17,9 bilhões, aumento de 13,5% em relação a 2022.