A recuperação da economia brasileira - quando vier - deverá ser lenta. Endividadas, as empresas caminham para sair da crise provocada pelo coronavírus com o caixa ainda mais comprometido e sem fôlego para investir, uma combinação que reduz a possibilidade de uma volta acelerada da atividade econômica.
O tamanho do endividamento fica evidente quando se analisa o balanço das empresas de capital aberto. Das 226 companhias não-financeiras com ações negociadas na bolsa de valores, a relação entre capital próprio e endividamento encerrou o ano passado em 76,8%, mostra um levantamento do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). Isso quer dizer que, para cada R$ 1 em dinheiro dos sócios, as empresas têm quase R$ 0,77 em financiamentos.
O estudo apontou que o endividamento recuou em relação a 2018, mas segue no mesmo patamar de 2014, quando teve início a última recessão no país. Além disso, boa parte da queda pode ser atribuída ao processo de desalavancangem realizado por Vale e Petrobras.
"Com o ambiente de recuperação fraca entre 2017 e 2019, o país não criou condições suficientes para que as empresas reduzissem as suas dívidas. Muitas mantêm um nível de endividamento superior ao que era observado em 2014", afirma o economista-chefe do Iedi, Rafael Cagnin. "Depois do primeiro baque do coronavírus, as companhias, assim como os estados, vão passar por um período de recuperação com medidas que ajudem a gerenciar o endividamento delas."
O impacto de Vale e Petrobras é notável ao fazer o recorte do tamanho do endividamento apenas do setor industrial. Sem as duas empresas, a relação entre endividamento líquido e capital próprio na indústria é de 94%. Com a mineradora e a petroleira no cálculo, esse índice cai para 73,7%.
Nos últimos anos, o alívio para as empresas também se deu mais com a troca da dívida de curto prazo pela de longo prazo. As companhias aproveitaram o cenário de queda dos juros e fortalecimento do mercado de capitais para se refinanciar. "Com a crise do coronavírus, a dívida curta deve subir de novo devido à necessidade de capital de giro das empresas", afirma Cagnin.
Aumento da capacidade ociosa
Há um segundo fator que deve levar a postergação do investimento no país: o aumento da capacidade ociosa. Com a economia num ritmo lento, o nível de utilização da capacidade instalada da indústria despencou para 57,3 pontos em abril, segundo o Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). É o índice mais baixo da série histórica iniciada em janeiro de 2001.
No curto prazo, o baixo nível de utilização da capacidade instalada é fácil de ser recuperado. Basta a empresa usar maquinário já disponível e contratar mais trabalhadores para acelerar a produção se houver um aumento da demanda. Mas, no longo prazo, os investimentos capazes de garantir um ritmo crescimento mais sustentável da economia brasileira são postergados e apenas destravados quando todo esse processo é concluído.
"Quanto o menor o nível da capacidade instalada, menos as empresas vão ter estímulos para investir", afirma Renata de Mello Franco, economista do Ibre/FGV. "Talvez, seja preciso esperar esse momento de isolamento social passar para que as empresas voltem a produzir sem restrição sanitária para só aí ser possível identificar quão comprometida ficou a produção."
Crise atual é a ‘cereja do bolo’
Com uma fábrica de confecções no Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, a empresária Natasha Macedo diz que a crise provocada pelo coronavírus "é a cereja do bolo" dos últimos anos marcados pela enorme dificuldade de manter a sobrevivência do seu negócio.
"A gente espera uma melhora todo ano. Mas ela nunca vem", diz.
Há cinco anos, a fábrica chegou a ter 20 funcionários. Hoje, são 12 – três foram demitidos em março quando as medidas de isolamento social tiveram início em São Paulo. No início da pandemia, a empresa interrompeu todas as atividades, mas reabriu para a produção de máscaras.
"Com as lojas todas fechadas, somos afetados diretamente porque não temos para quem vender o que produzimos. Agora, estamos fabricando máscaras de tecido e só com a metade do quadro dos funcionários", diz Natasha. Quem não trabalha teve o contrato suspenso.
Fábrica na zona sul de São Paulo perdeu 60% do faturamento com a crise — Foto: Arquivo pessoal
Hoje, o faturamento da empresa está 60% mais baixo do que o observado antes da crise e tudo que entra no caixa vai para pagar os salários dos funcionários e o aluguel do prédio.
"Todos os pedidos que eu tinha feito de tecido para chegar foram cancelados. O que entra é para pagar o que tem de ser pago", diz Natasha. "Um novo investimento é algo bastante distante."
Economia em revisão
No início desta crise, os economistas já projetavam um tombo bastante acentuado do PIB neste ano com a paralisação de boa parte das atividades, mas apontavam que retomada poderia ser rápida. Num jargão economês, a trajetória de recuperação esperada seria em V.
Nas últimas semanas, no entanto, as projeções para o desempenho da atividade econômica deste e do próximo ano já começam a ser revisadas por boa parte de bancos e consultorias.
"Não vai ser nada fácil a saída dessa crise. A recuperação não será em V. Não podemos ter a ilusão de que tudo se normalizará rapidamente depois de destruirmos tantos empregos e empresas", diz o economista-chefe da consultoria MB Associados, Sergio Vale. "Olhando para frente, vamos levar em alguns casos 10 anos para voltar onde estávamos."
A MB Associados projeta queda de 7,3% para o PIB deste ano e alta de 2% no ano que vem. Mas não descarta uma nova recessão em 2021.
Mais perdas a cada semana
O Brasil tem registrado um agravamento da pandemia, o que obrigou estados e municípios a ampliarem a quarentena para evitar a propagação do vírus e o colapso do sistema de saúde.
"A cada semana que a economia fica fechada aumenta a probabilidade de o maior número de empresas não conseguir atravessar essa ponte", afirma o economista-chefe do banco BNP Paribas, Gustavo Arruda. De uma recessão estimada inicialmente em 4% para 2020, ele mudou esse número para uma queda de 7%.
O vírus traz esse impacto para a atividade no curto prazo. Mas no médio e longo prazo, no entanto, as preocupações dos analistas englobam a incerteza política em relação ao futuro do governo Jair Bolsonaro e sobre a capacidade do país de retomar o equilíbrio fiscal.
Hoje, os economistas entendem que o aumento de gastos é justificável e necessário para conter os efeitos da pandemia. Mas, se essa piora fiscal se consolidar no próximo ano, a percepção de risco dos investidores sobre a economia brasileira deve crescer, afugentando ainda mais os investimentos.
"Há muita incerteza com os gastos que estão sendo feitos para combater a doença, se eles vão ficar contidos para este momento da crise ou se vão se estender, se o país vai ter uma dinâmica de dívida pública mais complexa lá na frente”, afirma Luka Barbosa, economista do banco Itaú.
A questão fiscal tem sido o principal entrave da economia brasileira. No ano passado, o Brasil aprovou a reforma da Previdência, considerada essencial para o acerto das contas públicas, mas a agenda para reduzir o endividamento do país é bastante longa. Neste ano, o Itaú espera um crescimento da dívida bruta para 92,2% do PIB, com uma queda para 88,3% do PIB no ano que vem.
A dívida bruta encerrou o ano passado em 75,8% do PIB.
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