A distância entre a Bahia e Portugal é de quase sete mil quilômetros. Mas, no que diz respeito ao enfrentamento da covid-19, talvez os dois não fiquem tão longe assim. O exemplo de Portugal, considerado um dos países mais bem-sucedidos no combate ao coronavírus na Europa, pode ajudar a entender melhor a situação epidemiológica no estado, que já passa da marca dos 1,5 mil óbitos.
“A gente tem um território muito amplo no Brasil. É como se existissem vários países da Europa no Brasil. Podemos comparar a Bahia com Portugal, que tem 10 milhões de habitantes, e o número de mortos nos dois, tanto o número absoluto quanto o número por milhão”, diz a farmacêutica Andréa Mendonça Gusmão, doutora em Virologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e do curso de Medicina da UniFTC.
Com pouco mais de dez milhões de habitantes, Portugal tem 40 mil casos confirmados de coronavírus e 1.543 óbitos. A Bahia, por sua vez, tem 14,8 milhões de habitantes, além de 51 mil casos confirmados e pouco mais de 1,5 mil mortes pela doença.
“Estamos em pandemia, não tem como controlar totalmente o vírus no estado. Mas todas as medidas que foram adotadas desde o início pelo governo do estado e pela prefeitura, aqui em Salvador, refletiram um controle. Essas mortes, estatisticamente, já eram esperadas”, explica a virologista.
O número de óbitos por milhão de habitantes fica em torno de 151, no caso de Portugal. Para a Bahia, é de 104. A taxa de letalidade no estado, atualmente, fica em torno de 3%. É menor do que a média brasileira, que estava na casa dos 5%. O índice nacional é puxado por estados como o Rio de Janeiro, que tinha 9,6% de letalidade entre os casos confirmados na semana passada.
“Quando a gente analisa a Bahia, a gente pensa na dimensão de um estado que é muito grande, maior do que alguns países. O número de mortes é um número alto, é um número que assusta e a gente gostaria que fosse menor. Mas, dentro de uma pandemia, é esperado”, analisa Andréa.
O exemplo português
Já Portugal é considerado um exemplo para os vizinhos europeus, por ter tido uma experiência positiva no combate à doença. Espanha e Itália, por exemplo, passaram dos 28 mil e 34 mil mortos, respectivamente.
Especialistas portugueses ouvidos pelo CORREIO explicam que os resultados do país, que deu início ao processo de reabertura em maio, tem razões que vão desde o próprio serviço de saúde até decisões políticas. A reabertura, porém, teve que ser interrompida de certa forma na última semana - devido ao aumento no número de novos casos, o país decidiu retomar alguns restrições.
“A razão fundamental é a qualidade do serviço público. Portugal foi capaz de responder ao aumento da demanda e também foi capaz de responder a questão da identificação dos casos, testes, isolamento e contágio”, diz o epidemiologista Henrique Barros, diretor do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e presidente do Conselho Nacional de Saúde, órgão consultivo do governo português para políticas de saúde.
O país decretou o chamado “estado de emergência” e incentivou o confinamento. De acordo com o virologista Vítor Duque, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, houve harmonia e convergência em virtude de uma liderança técnica forte por parte do Ministério da Saúde local, assim como colaboração política.
“Também desde o início houve o reconhecimento de que, no plano de atuação desenhado e estudado, havia um papel claramente definido para cada interveniente em termos hierárquicos e num perfil temporal correto de envolvimento e de atuação na estratégia delineada, sem sobreposições de funções ou mecanismos redundantes”, explica. Isso teria facilitado o fluxo de informações.
Para Duque, a sociedade portuguesa colaborou, ficando em casa e cumprindo as regras impostas pelo governo, que interrompeu aulas, restaurantes e instituiu teletrabalho. Havia, ainda, o que chamou de “vigilância discreta das autoridades policiais", que circulavam nas cidades nas viaturas em frequência maior do que o habitual.
Além disso, durante esse período, todas as pessoas têm acesso ao serviço de saúde do país, que é gratuito - mesmo quem ainda não tem o status de residência. O serviço, inclusive, não precisou ser ampliado. “Em Portugal, nunca houve descontrole nas portas dos hospitais, como no Brasil, Estados Unidos e outros países europeus. Nunca foram necessários mais leitos do que existiam”, destaca o epidemiologista Henrique Barros, da UPorto.
Um dos lados negativos, porém, foi que eles não teriam conseguido evitar mortes de idosos que viviam nos lares - como são chamados os abrigos para idosos. Quase 40% dos óbitos por covid-19 no país foram de idosos que viviam nesses locais.
“A primeira coisa que poderíamos ter feito diferente era ter mais testes e ver a identificação de pessoas que trabalhavam, já que muitas pessoas que trabalham nos lares também atuam simultaneamente em unidades de saúde. Por outro lado, poderíamos intensificar medidas como lavagem de mãos, uso de equipamentos de proteção individual e maior cuidado na proteção de superfícies”, diz Barros.
Para ele, é razoável comparar os dados de Portugal com a Bahia, mas é preciso considerar justamente o envelhecimento populacional - o país tem a segunda população mais velha da Europa. Assim, não seria possível comparar com um estado mais jovem, como a Bahia, sem levar isso em conta.
“Nós ainda não passamos pela pandemia e ainda vamos ter casos, mas, pelo que já tive oportunidade de falar com colegas brasileiros, a diferença é que Portugal considera (a covid-19) como uma ameaça sanitária. Independente das suas posições ideológicas e políticas, todos foram buscar alternativas e não usar isso como arma política”, reforça.
O virologista Vítor Duque, da Universidade de Coimbra, pondera que a Bahia e o Brasil estão em fases diferentes de Portugal, na pandemia. “Por aqui, ultrapassamos o pico da primeira onda, de modo que os números começam a ser residuais na maior parte do país, havendo apenas alguns focos de infeção que merecem preocupação, significando que o vírus continua a circular no país”, afirma.
Duque também nota diferenças na condução dos dois países. “Os políticos em Portugal criaram as condições para a implementação das normas (técnicas apontadas por cientistas). Sobre o Brasil, temos a sensação transmitida pela imprensa para o exterior que quem decide tudo são os políticos quer tenham conhecimento ou competência para tal ou não”.
Outros exemplos
Uma situação como a da Nova Zelândia, por exemplo, é algo mais difícil de atingir. O país na Oceania chegou a anunciar, no início do mês, que zerou casos de covid-19 e registrou apenas 22 mortes. Esta semana, porém, foram anunciados três novos casos de pacientes vindos de outros países. A primeira ministra, Jacinda Arndern, aplicou medidas severas de distanciamento social, a exemplo de um lockdown por sete semanas. A ilha ficou completamente fechada.
Para a virologista Andréa Mendonça Gusmão, da Ufba e da UniFTC, no Brasil, essa realidade só é possível de ser comparada com a de Fernando de Noronha, que também anunciou ter zerado os casos ativos de coronavírus no arquipélago.
“A Bahia está num índice de infecção alto, mas a gente achatou a curva aqui no estado. Por isso é que vamos ter um platô. Quando a gente chegar nesse número alto de mortes, vai se manter alto por um tempo, para começar a descer lentamente. Ao invés de um pico de uma só vez, teremos um platô e, assim, não colapsamos nosso sistema de saúde. As pessoas estão sendo atendidas e, hoje, tem leito tanto de enfermaria quanto de UTI (Unidade de Terapia Intensiva)”.
Ainda assim, ela também pondera que as realidades da Bahia e de Portugal são diferentes. “A Bahia é um estado mais pobre, com um grande número de pessoas vivendo em condições precárias. Mas, em comparação com outros estados do Brasil, a Bahia tem um controle maior da disseminação da covid-19 e do número de óbitos”, diz.
Uma das principais razões para que isso tenha acontecido foi que as medidas de restrição de circulação e de distanciamento social foram adotadas com antecedência pelo governo estadual, assim como pela prefeitura de Salvador. Para ela, isso foi tão importante para a organização da Bahia no início da pandemia quanto a criação de novos leitos e de hospitais de campanha.
Além disso, os efeitos do coronavírus foram mais tardiamente sentidos aqui também pela situação do aeroporto de Salvador, que operava com um número reduzido de voos internacionais. Assim, uma vez que os primeiros casos da doença foram de passageiros que vieram de outros países, essa falta de voos estrangeiros também pode ter contribuído para retardar o avanço do vírus.
“Mas essas medidas tomadas no início da pandemia devem ser mantidas, reestruturadas e reorganizadas. E a população tem que colaborar, continuar lavando as mãos, os alimentos e mantendo os hábitos de higiene. O vírus vai continuar se disseminando e não vai desaparecer. A gente vai ter que conviver com ele”, reforça. E claro, permanecendo em casa, dentro do possível.
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