Com duas decisões contraditórias em menos de três dias sobre a realização de cultos religiosos durante a fase mais crítica da pandemia de covid-19 no Brasil, o STF (Supremo Tribunal Federal) voltou a confundir cidadãos sobre as validades de suas medidas.
O ministro Kassio Nunes Marques decidiu, neste sábado (3), autorizar a realização de cultos e celebrações religiosas em todo o Brasil. Ele avaliou as celebrações realizadas com protocolos sanitários poderiam ser consideradas essenciais, especialmente durante a Semana Santa.
Nesta segunda-feira (5), o ministro Gilmar Mendes divergiu da decisão do colega e proibiu a realização de cerimônias religiosas no estado de São Paulo. O magistrado também pediu ao presidente da Corte, Luiz Fux, para remeter o caso ao plenário do Supremo, que dará a decisão definitiva sobre a questão a partir desta quarta-feira (7).
Como resultado do embate, o tribunal criou insegurança jurídica, como mostram as opiniões divergentes de especialistas entrevistados pelo R7. De acordo com o advogado constitucionalista, Acacio Miranda da Silva Filho, por enquanto é possível realizar cultos com público em todo o Brasil, com a exceção do estado de São Paulo.
Qualquer cerimônia no estado paulista, portanto, é passível de multas e sanções, já que a decisão manteve a validade de decreto estadual. "Serão impostas as sanções administrativas previstas pelo decreto do governo do estado de São Paulo, uma vez que este decreto continua vigorando", explica.
Já o advogado especialista em Direito Público e Penal, Marcelo Aith, opina que a realização de cerimônias religiosas no estado está respaldada pela natureza nacional da liminar anterior.
"A decisão do ministro do Kassio é de âmbito nacional, proferida em uma ADPF [Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental] que tem natureza erga omnes, ou seja, ela alcança todas as pessoas. A decisão do ministro Gilmar, embora proíba todos os cultos no estado de SP, não pode se sobrepor à decisão do ministro Kassio", diz.
A advogada constitucionalista Vera Chamim, porém, lembra que a decisão de Gilmar Mendes tem a mesma natureza e que existe também a interpretação de que esta liminar deve se estender a todo o Brasil.
"Se nós interpretarmos desta maneira, ninguém poderá participar de nenhum culto até que o Supremo decida na quarta-feira (17)", defendeu.
Para definir a questão, agora o debate será levado ao plenário do STF, que decidirá de forma conjunta sobre a liberação ou não de cultos religiosos nesta fase da pandemia. A avaliação é de que os ministros da Corte devem vetar a liminar de Nunes Marques.
Enquanto isso, alguns dos especialistas consideram que o Supremo mostrou mostrou instabilidade jurídica em relação às próprias decisões passadas, como a proferida em caráter definitivo, no ano passado, que deu autonomia de estados e municípios para decretarem medidas de isolamento social contra a covid-19.
Neste sentido, a decisão de Nunes Marques seria improcedente por contrariar a própria liberdade e soberania concedida a estes entes no combate à pandemia, explica a advogada constitucionalista Vera Chamim.
"É natural existirem divergências mas nesse caso, o tema já está definitivamente decidido pelo STF e algumas divergências são de natureza politico-ideológica e não técnico-jurídica", opina.
Quais foram os argumentos de Kassio Nunes para permitir os cultos? E os de Gilmar Mendes para vetá-los?
Ao autorizar a realização de cultos, Kassio Nunes defendeu que, além da importância da realização das cerimônias para católicos durante a Semana Santa, a proibição destas é inconstitucional, suprimindo a liberdade religiosa.
“Ao tratar o serviço religioso como não-essencial, Estados e municípios podem, por via indireta, eliminar os cultos religiosos, suprimindo aspecto absolutamente essencial da religião, que é a realização de reuniões entre os fiéis para a celebração de seus ritos e crenças”, afirmou.
A decisão do ministro foi tomada em ação movida pela Anjure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos). Em sua decisão, Gilmar Mendes confrontou diretamente alguns dos pontos considerados pelo colega.
Ele afirmou que não procede o argumento de que a imposição de restrições à realização de atividades religiosas coletivas afrontaria o direito à liberdade religiosa, considerando a excepcionalidade das medidas restritivas e a situação dramática da pandemia no Brasil.
O ministro também defendeu que a Anajure não tem representatividade nacional e, portanto, não teria legitimidade para entrar em ação com uma ADPF.
De onde vieram os pedidos que geraram as duas decisões?
A decisão de Gilmar ocorreu no âmbito de uma ação do PSD (Partido Social Democrático), que discorda de um decreto do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que proíbe encontros presenciais em templos do estado.
A de Kassio Nunes atendeu a pedido da Anajure em junho de 2020 ao então decano do Supremo, Celso de Mello. Na ação, a Anajure solicitou que fossem derrubados decretos municipais e estaduais que haviam vedado atividades religiosas e o funcionamento dos templos sem ressalvar as práticas religiosas que não gerassem aglomeração - o que não incluía os cultos.
A entidade listou atividades que teriam sido impactadas pelos decretos questionados: serviços de capelania, ações de cunho social e filantrópico, atividades eclesiásticas administrativas e até transmissões de cerimônias religiosas por meios virtuais, quando não há público presente.
Oito meses depois, Kassio viu semelhança entre o pedido da Anajure e duas ações contra decreto do governador João Doria (PSDB) que proíbem os templos de abrirem as portas para atividades coletivas
Quando o tema será decidido de forma definitiva?
Com as decisões inversas, o Plenário do Supremo deve definir a questão por meio de seu colegiado nesta quarta-feira (17). Em julgamento no ano passado, os ministros deram autonomia a governadores e prefeitos para definirem medidas de isolamento social e a tendência é de que o STF mantenha a mesma posição e deixe sob responsabilidade de estados e municípios determinarem medidas restritivas.
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